leia também “Sobre dreads e preconceito 2”

Nunca pensei que meu cabelo pudesse render tanto assunto. rs Quando decidi dar uma aparada nos dreads o Klebão, especialista no estilo dread needle, me questionou várias vezes se eu tinha certeza disso. Ele contou que muitos se arrependem e sugeriu que eu guardasse o cabelo cortado para, caso me arrependesse, colocar de volta na semana seguinte, prazo médio em que a maioria retornava após aparar os dreads. Mas garanti para ele que esse não seria o meu caso, que não tinha qualquer apego desse tipo com o comprimento dos dreads, cultivado durante quase seis anos após outros dois deixando o cabelo crescer. Deixei os dreads cortados com o Klebão e ganhei um desconto na manutenção da raiz 😉

Foram quase oito anos de cabelo intocado. O visual estava demais, mas estava atrapalhando fazer coisas simples do dia a dia como dormir, me sentar e levantar. Praticamente 1Kg a menos em questão de segundos. Sem qualquer atividade física ou regime maluco. rs Cabelo aparado me senti pronto para seguir a vida acumulando histórias, vitórias e derrotas, consciente de que o que realmente importa são os verdadeiros valores e essência humana dentro de nós.

Depois de oito anos aparei o cabelo / Foto: Klebão Dreadmaker.

Depois de oito anos aparei o cabelo / Foto: Klebão Dreadmaker

Postei a foto acima em minhas redes sociais e a repercussão foi enorme. Desconhecidos curtindo e comentando a foto durante alguns dias. Entre pedidos de doação dos dreads cortados, elogios, lamentações e depoimentos se identificando com minha situação e apoiando minha decisão, tive oportunidade de refletir e transmitir meus valores para essas pessoas:

“… Bate um certo receio, mas é passageiro. A palavra é “desapego”. A sensação é realmente muito boa de leveza. E sabe o que mais curti, na real? Saber que serão, pelo menos, mais quatro anos de curtição com o cultivo dos dreads para que cheguem novamente saudáveis nesse tamanho. Cabelo cresce de novo, o que realmente importa é o que está por dentro. O dia em que der na telha raspo a cabeça e sigo em frente, feliz da vida…” – em resposta à Brida Castelo Branco.

“… Sei bem como é essa ansiedade para ter os dreads longos pra poder fazer umas amarrações e curtir a VIBE do visual. rs Mas é muito legal cultivar e curtir cada fase dos dreads ao longo dos anos. Tenha paciência e desfrute dessa experiência…” – em resposta à Andressa Lima.

E assim, um tema que julgava superficial, me surpreendeu com seu alcance e o interesse que despertou nas pessoas, reservando ainda um capítulo dos mais significativos em minha curta carreira até aqui. Se os comentários no post se mantiveram restritos a discutir o comprimento dos dreads, uma mensagem inbox do Victor Lino, jovem de 16 anos, me tocou profundamente ao abordar o tema do preconceito. Se ainda não tinha me dado conta, nesse momento percebi o quanto meu trabalho e opinião podem ser relevantes para algumas pessoas. Quanta responsabilidade!

Fiquei tão impressionado com a consciência e maturidade do Victor, que pedi sua autorização para publicar trechos da nossa conversa em post aqui no Blog, acreditando que ele possa servir de exemplo positivo para outros jovens. Victor já trabalha – em mais de um emprego ajudando nas despesas da casa -, além de estudar, tendo uma rotina diária que começa às 5h da manhã e se encerra à 1h quando deita para dormir apenas 4h até que o despertador toque novamente. Fiz questão de conhecê-lo pessoalmente e presenteá-lo com um CD para incentivar a sua difícil caminhada, mostrando que sua postura será recompensada. (leia abaixo trechos da nossa troca de mensagens)

Victor com o EP "Dias de Paz" / Foto: por transeunte gentil na Av. Paulista

Victor com o EP “Dias de Paz” / Foto: por transeunte gentil na Av. Paulista

Victor:

“Então mano, prazer Victor.

Eu tenho 16 anos e desde criança curti dreads, há pouco tempo os meus pais deixaram eu colocar e eu fiquei muito feliz. Eu deixei meu cabelo crescer e fiquei com um black da hora, mas infelizmente tive que cortar por causa do meu serviço. Eu sei que existe muito preconceito, mas isso pra mim não é problema. Queria saber como você “enfrenta” o preconceito, gostaria de saber também como é no seu emprego (se tu não trabalhar só com música), as pessoas te aceitam normal, foi muito difícil pra encontra? Pra mim é um pouco complicado por conta da idade né?

Então, valeu por ler e se responder valeu também.

Abraços.”

Théo:

“Olá Victor, o prazer é todo meu =)

Cara, muito feliz em receber sua mensagem. Ver alguém na sua idade tão consciente ao abordar um tema delicado como o preconceito é muito legal. Dreads são realmente demais! Que bom que seus pais te apoiam nessa decisão de cultivar os dreads. Ter o apoio da família é, com certeza, o primeiro passo para que você possa enfrentar o mundo sem qualquer receio do que possam dizer ou pensar.

A história que me contou sobre ter deixado o cabelo crescer pra fazer os dreads, mas de ter que cortá-lo por causa do serviço é exatamente a mesma que vivi quando decidi que iria ter dreads. Cortei o cabelo, mas não desisti da ideia dos dreads. Sabia que aquela era só uma fase. Deixei o cabelo crescer de novo.

Apesar da paixão pela música e do sonho de fazer desse ofício o meu ganha pão, me formei em Publicidade e Propaganda, profissão que exerci algumas vezes durante os últimos anos. A área de comunicação é bem mais tranquila com relação ao visual. Os dreads não atrapalharam em nada para que eu conseguisse emprego em agências de publicidade e até mesmo como consultor de marketing.

Jornalismo, rádio e tv, música, artes plásticas, cinema, moda, entre outras atividades de humanas, são abertas para profissionais com um visual mais despojado. Mas com certeza, mesmo nos dias de hoje, dependendo da sua área de atuação, algumas portas podem se fechar por causa dos dreads. Porém, muitas outras estarão escancaradas e mais interessadas em seu caráter, competência, formação e inteligência do que no seu cabelo.

Nos empregos por onde passei quando já estava com dreads nunca percebi nenhuma conduta preconceituosa contra mim, ao contrário. Minha competência, caráter e educação sempre foram colocados em primeiro plano e me levaram a ocupar cargos de confiança, sendo respeitado e admirado por minha postura.

Mas é evidente que o preconceito está por toda parte e é algo muito feio, pois faz um pré-julgamento negativo de uma pessoa apenas por seu jeito de se vestir, falar, cor da pele, tipo de cabelo, etc. Mas se você quer saber, os olhares e comentários mais preconceituosos que já sofri por estar de dreads partiram de pessoas que também usavam dreads. Isso mesmo! Apesar dos dreads não fumo maconha e não ouço muito reggae, tenho preferência por outros estilos musicais, o que é praticamente uma ofensa para algumas pessoas de dreads, que ao se depararem com minha verdade me tacham de mentiroso ou simplesmente se dizem decepcionadas comigo.

São muitas possibilidades para sua vida, Victor. Você viu que o preconceito pode estar onde menos esperamos. Mas o que importa mesmo é o que temos do lado de dentro. Hoje você é apaixonado por dreads, mas amanhã pode não querer mais e voltar a raspar a cabeça. Independente disso, nunca deixe de ouvir o que diz o seu coração. Sua felicidade verdadeira estará dentro dele.

Caráter, respeito e educação são coisas que ninguém poderá tirar de você. Se mantenha junto da sua família. O mundo te dirá coisas boas e ruins, é importante ouvir os dois lados com atenção para exercitar a reflexão, o bom senso, a generosidade e a humildade. Minhas músicas falam sobre isso, sobre olhar pra dentro. Acredito na música como ferramenta poderosa de transformação social, capaz de tocar o coração das pessoas e despertar nelas os verdadeiros valores e essência humana para que possamos viver em uma sociedade mais consciente e, finalmente, desfrutarmos de “Dias de Paz”.

Acho que me estendi, mas espero que tenha conseguido responder sua pergunta.

Um grande abraço,

Théo.”

Victor:

“Eu te entendo cara, tudo que tu disse parece com o que eu penso. Eu também não fumo maconha e não sou o fã número 1 do Bob Marley. Eu sou eclético, gosto de tudo um pouco. Agora pensa comigo: se eu tenho dreads tenho que ouvir só reggae e fumar maconha? Eu discuti com uma garota da minha sala por causa disso: se eu gosto de forro eu tenho que ser do nordeste?; se eu gosto de funk tenho que usar tênis de R$ 1.000,00?; e se eu ouço MPB tenho que ser lésbica? Eu levo o preconceito na brincadeira para não ficar nervoso e perder a razão.

É isso ai, que a música mude as pessoas.

Opa, e valeu por responder.

Abraço,

Victor.”