Começando pelo fim
Já se passou uma semana, mas ainda pulsam intensamente em mim os sentimentos vividos naquele dia no Senac Tatuapé. Lembro-me perfeitamente da cena que presenciei na volta pra casa:
Parado em meio ao trânsito da Radial Leste me deparo com um homem agarrado ao volante e o rosto encharcado em lágrimas. Engraçado, um sorriso sutil brota em seu rosto enquanto as lágrimas escorrem. Ele parece não se incomodar com os olhares dos motoristas ao redor. Os motoqueiros, privilegiados com a possibilidade de trafegar entre os carros, passam apressados escapando do trânsito e sem perceber o choro risonho daquele homem. No retrovisor percebo o brilho intenso em seu olhar e tenho a certeza da imensa felicidade que sente. O sinal fica verde para que ele siga e leve esse lindo sentimento por onde for.
Antes
Fiquei devendo para vocês um relato sobre os shows no Teatro Flávio Império, e o que antes era motivado por falta de tempo passou a ser oportuno. Esses shows foram, com certeza, os melhores que já fiz até aqui. Por conta de tudo o que vivi naquele palco e seus desdobramentos.
Depois de alguma confusão com as datas ficou acertado que me apresentaria nos dias 14 e 15 de março. O Teatro, reinaugurado há pouco, ainda não contava com a estrutura total prevista. Começava, então, uma articulação e negociação com a Prefeitura para que eu pudesse apresentar ao público o espetáculo “DIAS DE PAZ + ARTE” na íntegra, o que incluía um espaço para a exposição das obras de arte e um projetor para exibição do mini documentário com bastidores da gravação do EP e do videoclipe de “Dias de Paz”, além de projeções para composição do cenário.
Tudo perfeito durante a passagem de som para o show do dia 14. Até que momentos antes do início o projetor dá sinais de instabilidade e preciso tomar a decisão: “Sem projeção para o show de hoje, galera.”. Me abato, queria dar o melhor para aquele público. No final das contas eu é que recebo o melhor deles. Quanto carinho, quanta disposição em aceitar o novo. Nunca me senti tão bem em cima do palco. Além da energia maravilhosa do público, desfrutei da entrega total da banda. Vocês conseguem dimensionar a alegria que é dividir o palco com pessoas que se conectaram com meu som de maneira tão verdadeira e intensa? É coisa rara em um projeto solo, sentir que ao seu lado estão mais do que músicos apenas executando seu trabalho.
No final fui recompensado com lindos relatos de pessoas que se emocionaram e chegaram às lágrimas durante a apresentação. Entre os funcionários do Teatro ouço a seguinte observação: “Cara, quanta criança! Quando as vi chegando pensei o pior, pois elas costumam “tocar o terror” durante os shows aqui. Fiquei impressionado como ficaram quietinhas prestando atenção.”.
Para o dia 15 foram resolvidos os problemas com o projetor e o show aconteceu como havia imaginado. Muitos dos que estiveram no Teatro no dia anterior voltaram para conferir o show completo. Novamente me entreguei de corpo e alma e recebi o carinho daquelas pessoas incríveis. Entre elas a Fabiana Ferreira, que dias depois me mandou um e-mail:
“Oi Theo, tudo bem?
Antes de tudo, quero parabenizá-lo pelo excelente trabalho… muito bacana mesmo! Tive a oportunidade de vê-lo no último domingo no Teatro Flávio Império e gostei muito.
Bom… mas além de elogiar o seu trabalho, também gostaria de convidá-lo à participar de um projeto sobre Cultura de Paz, pelo qual sou responsável junto a mais três professoras do SENAC Unidade Tatuapé (sou professora do Programa Jovem Aprendiz na rede SENAC).
A rede SENAC São Paulo tem um grupo que discute Cultura de Paz, e devido aos problemas que enfrentamos em nossa sociedade, todas as unidades estão desenvolvendo atividades com essa temática, inclusive fizemos uma mostra com o foco no holocausto e vida de Anne Frank.
Me identifiquei muito com seu trabalho, letras … Mesmo porque já atuei com a população nordestina, ribeirinhos, quilombolas, indígenas…
É possível que você participe voluntariamente?
Agradeço desde já a atenção…”
Fiquei extremamente feliz e emocionado com o convite da Fabiana. E depois de algumas trocas de e-mails ficou definido que eu faria uma apresentação para os alunos no evento de encerramento do projeto. Há tempos idealizo circular pelas escolas apresentando a Cultura de Paz presente em meu trabalho. A apresentação voluntária proposta pela Fabiana e o Senac Tatuapé não dispunha de verba ou estrutura para me receber com a banda, então, depois da euforia bateu o receio: “Será que dou conta? Não tenho didática nenhuma, nunca me apresentei para alunos. Nossa, é um público de adolescentes, será que munido apenas do meu violão e versos conseguirei não ser engolido por eles?”. Ia ter que encarar essa parada sozinho. E fui…
No Senac Tatuapé
Na noite anterior, enquanto arrumo o carro, minha mãe não se conforma com o tanto de coisas que iria levar. Nem eu! rs Afinal, já não era mais baterista. Achei que o violão e o microfone bastariam quando passei a cantar, mas não tem sido assim. O carro da família vai sempre lotado! E se dessa vez não eram instrumentos, eram as obras de arte e tudo mais que é preciso para expô-las. Carro organizado, avanço pela madrugada ensaiando. Havia voltado a pouco de viagem ao Ceará, dias em que não toquei no violão.
São poucas as horas de sono até levantar às 06h, levar meus pais ao trabalho e chegar às 07h30 no Senac Tatuapé. Com o carro no meio da rua, confuso sem saber por qual portão entrar, sou abordado com entusiasmo e simpatia: “Oi Théo, tudo bem? Sou a Solange, colega da Fabiana. Pode entrar com o carro ali, o estacionamento já foi liberado para você.”. A Solange me ajuda a descarregar o carro enquanto diz o quanto está feliz com a minha presença. Que recepção! Entre idas e vindas, do carro ao auditório do outro lado da rua, fui contando um pouco da minha trajetória e ficando sem fôlego. O preparo físico não está lá essas coisas. rs
A Fabiana chega e finalmente nos conhecemos. Agradeço pela oportunidade e confiança em meu trabalho. Seu abraço carinhoso corresponde ao teor do projeto que vem desenvolvendo com seus alunos. Enquanto as professoras seguem para a sala de aula eu termino de montar a exposição das obras e passar o som. O evento teria início após o intervalo. A ansiedade em mim era cada vez maior.
Antes de começarmos ainda dá tempo de acompanhar Fabiana e Solange para um cafezinho numa lanchonete próxima. Apesar de adorar o perfume que sinto, e a linda imagem da fumaça que sobe da xícara, não bebo café. As duas aproveitaram para me contar mais sobre o projeto desenvolvido por elas: “Uma juventude ativa por uma Cultura de Paz”. O objetivo é estimular nos alunos o olhar sensível ao outro, às coisas que não são nossas. “Tarefa difícil nos dias de hoje”, concluem. E foi esse olhar sensível que buscam estimular nos alunos que Fabiana diz ter encontrado em meu trabalho:
“Mais uma vez agradeço por tamanha sensibilidade e doação, em todos os sentidos. Sei o quanto há de verdade em seu trabalho, e é por isso que acredito ter muita relação com esse projeto que desenvolvemos junto aos alunos. O que gosto em suas composições é justamente a capacidade que você tem em falar de coisas tão profundas com uma simplicidade incrível! A facilidade com que proporciona que a mensagem chegue às pessoas. Suas composições nos convidam para dançar com o mundo e com nossos sentimentos mais íntimos, talvez até aqueles que nos elevam e nos possibilitam evolução.”
De volta ao auditório ajusto alguns detalhes enquanto os alunos começam a chegar. Frio na barriga! Acho engraçado quando um deles cutuca o outro e diz: “Aquele não é o Théo? Nossa, é igualzinho a foto.”. Ouço chamarem: “Hey, Théo!”. Cumprimento o garoto e descubro seu nome: Wallace. Depois uma jovem de voz meiga e sorriso ingênuo vem me dar um abraço carinhoso e se apresenta: “Oi Théo, sou a Thauane.”. Me surpreendo com o reconhecimento e fico muito feliz com o carinho recebido. Mais tarde cada um deles ganharia um EP, mas não por terem vindo falar comigo. E antes de começar ainda deu tempo da Karina, jovem mais extrovertida, pedir para que eu dedicasse uma música pra ela durante minha apresentação. rs
Fabiana, Solange e Shirley dão início as atividades. A Shirley, só a conheci naquele momento, já em cima do palco. Seu sorriso e entusiasmo têm enorme carisma sobre os alunos. Parece que tem a mesma vibração que eles. Contagiante! Ainda havia a Joanne, lembrada por elas como fundamental para chegarem àquele momento tão importante. Ela mudou de Estado dias antes, e infelizmente não pôde estar conosco. Chegamos a trocar algumas palavras pelo Facebook:
“Parabéns pelo seu trabalho… “eu não quero ter o carro do ano, eu só quero ter o melhor ano” foi uma frase que fez bastante sentido =) Espero conseguir vê-lo no Senac! Tua música vai alcançar muitos ecos…”
A conclusão do projeto consistia na apresentação de vídeos stop motion (fotos em sequência) feitos pelos alunos, com temas relevantes ao desenvolvimento de uma Cultura de Paz em seus cotidianos. Eles criaram ações de conscientização. Desde o simples ato de ceder o lugar no transporte público aos mais necessitados, independentemente de estar ocupando ou não o assento preferencial, até uma visita a um desconhecido que precisa de apoio na batalha contra o câncer.
O tempo foi passando e eu me sentia cada vez mais encantado com tudo aquilo. Os alunos apresentavam seus vídeos e me impressionavam com tamanha sensibilidade e crença na capacidade de mudarem o mundo. Muitas vezes desacreditados e desestimulados pela sociedade, eles tiveram dessas professoras, e do Senac, o apoio necessário para acreditarem em si mesmos e na força dos pequenos gestos cotidianos. Louvável a postura dessas educadoras, que mesmo diante de tantas dificuldades e descaso público com sua profissão, e com esses jovens, se mantêm fortes e dispostas a irem contra uma engrenagem que insiste numa sociedade entorpecida e desigual nas oportunidades de uma vida digna.
Um dos grupos apresentou um problema de higiene na escola em que estudavam, que sem verba para contratar profissionais de limpeza, tinha na tia da cantina a pessoa que ficava muito além do seu horário para limpar a sujeira deixada pelos alunos após o intervalo. A campanha proposta era conscientizar os colegas a jogarem o lixo no lixo e ajudar a tia da cantina, que fazia muito além do seu serviço sem qualquer reconhecimento. Soube também que bitucas de cigarros podem ser recicladas e virar roupa. Por que não conscientizar os fumantes de que seu ato porco de atirar bitucas no chão pode virar doação e vestir os mais necessitados?
A energia era incrível naquele auditório. O arrepio me tomou por diversas vezes. Estava à flor da pele. Foi um longo caminho até chegarem ali, sei disso. E ao mesmo tempo em que relaxei ao ver que aqueles jovens estavam prontos para minha música, já não sabia se eu estava pronto para eles. Era fácil reconhecer meu papel de coadjuvante, alunos e professoras mereciam todas as glórias e protagonismo desse dia que ficará marcado em mim para sempre. Se tenho por crença o poder na arte como ferramenta poderosa de transformação social e cultural, na educação tenho convicção. Só ela para nos fazer alcançar o sonho de “Dias de Paz”, dias de uma sociedade mais consciente dos seus verdadeiros valores e essência.
O nervosismo, a alegria de estar ali, e toda aquela energia no ar, mexeram demais comigo. Contive a emoção durante a exibição do mini documentário e abri a apresentação cantando “Criança”. Nas falas entre as músicas brotavam de mim as memórias de tempos de conflitos internos, de descobertas e da importância da família em minha formação como ser humano consciente. Os olhos de alguns cheios d’água (inclusive os meus), a emoção entre as professoras, e meus suspiros profundos, deixavam claro que o momento era de comunhão e entrega total de todos.
De repente o microfone para de funcionar. Brinco dizendo que infelizmente só sabia cantar, que não tinha talento algum para stand up comedy. rs Os segundos passam e acho que já se foi uma eternidade. O problema parece longe de ser resolvido, então concluo que preciso fazer algo. Me lembro do show do Tiago Iorc no Theatro Net, quando ele abandona o microfone e vai até a beira do palco acompanhado apenas de um ukelele (instrumento havaiano), também sem qualquer amplificação, e canta um canto que ecoa pela plateia silenciosa e atenta. Simplesmente incrível! Guardadas as devidas proporções, proponho fazer o mesmo. Desligo o violão, me coloco à beira do palco e canto uma música inédita chamada “Não deixe de viver”, que diz sobre os sonhos que muitas vezes deixamos para trás. O silêncio se estabeleceu e pude viver um dos momentos mais emocionantes dessa minha jornada musical até aqui. Gratidão!
Não havia mais qualquer dúvida, estava totalmente curado. Uma semana antes estava afônico, completamente sem voz. A apresentação segue até o momento em que chamo ao palco o Wallace e a Thauane para lhes presentear com o EP. Gostaria de presentear a todos, mas os escolhi como símbolo daquele dia por gestos que me tocaram profundamente. A Thauane levou seus amigos para visitar a tia doente e muito abatida com a perda dos cabelos e retirada de uma mama. Os amigos da sobrinha eram completos desconhecidos, mesmo assim a sensibilidade de Thauane, e sua capacidade de mobilização, devolveu o sorriso e a esperança para sua tia.
Fiquei sabendo que Wallace estava pensando em largar o curso de Jovem Aprendiz, mas cumpriria a promessa de me assistir. Ele encerrou a apresentação dos alunos com uma fala sobre a importância do diálogo dentro de casa, disse como um mal-entendido, em um momento de nervosismo, pode distanciar pessoas que deveriam estar sempre unidas em apoio simultâneo. Descontraindo com piadinhas para esconder o nervosismo e possível timidez, Wallace me cativou e deu a dimensão da importância que meu trabalho pode alcançar. E se eu era o motivo dele estar ali, digo que agora ele é o motivo para que eu siga ainda mais determinado em fazer da minha arte algo relevante ao desenvolvimento social e cultural. Wallace, muito obrigado! Espero que tenha decidido permanecer no curso.
Antes de terminar atendi ao pedido da Karina, e dediquei para ela a música “Por Aí”, meu novo single que está no forno e logo disponibilizarei para vocês. Para fechar cantei a música símbolo desse dia maravilhoso. Todos se levantaram e “Dias de Paz” ganhou um lindo coro. Emoção indescritível ouvir minha música cantada do começo ao fim com tamanha verdade e identificação por esses jovens.
E o que era para ser uma selfie se transformou numa verdadeira invasão de palco. rs Perguntei: “Quem aqui é bom de selfie? Eu não sou muito bom e estou com as mãos ocupadas tocando violão. Alguém sobe aqui no palco pra gente tirar uma selfie com essa galera?”. Vi um garoto na primeira fileira pegando o celular e já me posicionei de costas para o público, só esperando que ele encostasse do meu lado para tirarmos a foto. Quanta ingenuidade! rs O palco foi invadido por quase todos os alunos e me vi rodeado de celulares, lindos sorrisos, muito carinho e gritos de “olha aqui, olha aqui”. O sentimento foi de missão cumprida!
O eco
Depois da experiência arrebatadora proporcionada pelos alunos e professores do Senac Tatuapé, vivi mais uma incrível jornada na semana passada. O amigo, professor e escritor Flavio Notaroberto, soube da minha experiência com jovens alunos e me convidou para acompanhá-lo à E. E. João Prado Margarido, no Itaim Paulista, extremo da Zona Leste. Lá ele iria promover mais um “Encontro com o escritor”, projeto independente que busca discutir a importância da literatura, e da arte de maneira geral, para o crescimento humano.
Alguns compromissos de última hora quase me impediram de ir. Já sentia a angustia no peito pelo lamento de não poder comparecer. Mas queria sentir novamente a sensação maravilhosa que se estabelece na relação de troca com esses jovens em formação. Então fui… (de novo)
Para trás ficaram as preocupações pelos compromissos abandonados, fui preenchido por um lindo sentimento de felicidade ao ver, e ouvir, minha arte sendo apropriada pelas crianças. São elas nossa esperança em “Dias de Paz”. A turminha, com média de 11 anos de idade, adorou a música “Criança”, e já no final estavam cantando o refrão comigo. Era a primeira vez que ouviam. Quanta emoção!
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