Os dias passam, por vezes nos distanciam de sentimentos vividos intensamente, esfriando a importância de alguns momentos. Assim, a vida segue e os detalhes do dia a dia se perdem, atropelados pela urgência de uma rotina frenética estabelecida. Há que se viver algo muito especial para que os sentimentos se intensifiquem com o passar dos dias e fique evidente a importância daquele momento.

No dia 31 de maio (quase um mês atrás) estive no Senac Itaquera para um show/palestra que abordou o tema da Humanização nas Relações. Minha participação foi parte da programação do encontro pedagógico mensal realizado pela instituição. E se em 2015 o convite para um show/palestra para alunos do Senac Tatuapé me colocou diante do Théo educador, papel social totalmente desconhecido por mim até aquele momento, mais uma vez o Senac me colocou diante de uma nova perspectiva: o Théo artista não basta.

Show/Palestra Senac Tatuapé (2015)

Show/Palestra Senac Tatuapé (2015)

“Educar é uma obra-prima, uma obra realmente artesanal, cujo resultado é a futura felicidade dos filhos e de todos à sua volta. Por isso, quem ama, educa! Formando cidadãos éticos.”Içami Tiba

“Quem ama, educa!”, afirmação que me fez compreender a diferença significativa entre professor e educador, até então sinônimos em minha cabeça. Se o amor ao próximo é requisito básico para educar e ajudar na formação de cidadãos éticos, me sinto pronto. Percebem que somos todos educadores?

Enfrentar o público fora dos palcos ainda é uma novidade para mim. Com meu violão fica fácil encarar esse desafio. Me justifico através da arte, é tudo muito natural quando compartilho minha essência e meus valores por meio da música. E foi assim, por essa naturalidade em disseminar a Cultura de Paz, que cheguei às salas de aula. Mas desde o início senti que o Senac Itaquera queria mais de mim.

Ao acertar minha participação no evento vi meu e-mail repleto de informações sobre o tema, incluindo a definição da palavra humanização no dicionário, links de referência sobre a importância crescente de um ambiente corporativo mais humano, a conscientização da escuta ativa e um artigo sobre Justiça Restaurativa. “Justiça Restaurativa?”, mas que raio é isso? Li tudo e me espantei com a quantidade de estudos, teorias e movimentos existentes, e em desenvolvimento, sobre algo que para mim foi sempre tão natural.

A proposta era que eu mediasse uma roda de conversa junto aos professores e alguns funcionários. E estava sendo exigido de mim muito mais do que canções e um discurso coerente. Questionaram o meu conhecimento teórico sobre Cultura de Paz e de que maneira poderia conduzir a atividade, que metodologia usaria. Gelei! (rs) Como assim? “Eu vivo isso”, respondi. Meu negócio é cantar, é dizer sobre as coisas do meu coração e a maneira como me relaciono e enxergo o mundo.

Mas diante de uma plateia de docentes isso não seria o suficiente. A cada novo convite e participação em eventos como o do Senac Itaquera percebo a demanda crescente por um Théo que não seja só artista, mas também um educador de repertório vasto. Percepção que se confirmou nessa ocasião. Há necessidade de buscar conhecimento científico sobre aquilo que tenho vivido apenas no coração.

Comprometido, e empenhado em fazer a diferença, me preparei muito além dos ensaios ao violão. Pesquisei palestrantes que abordam o tema da humanização em ambientes corporativos. Raras exceções, me deparei com um discurso motivacional raso e engessado, beirando o infantil em dinâmicas de grupo sem propósito de reflexão e troca. Serviram para me mostrar que a vivência e sensibilidade artística poderiam ser o diferencial da minha abordagem.

Roda de conversa

Como iniciar a discussão? Foi uma das questões com a qual me deparei durante a preparação para esse show/palestra. Ora, estamos falando da relação entre seres humanos! Em que ponto essa relação, que deveria ser naturalmente humana, se desumanizou? Ficou clara a necessidade de discutirmos a profundidade individual de cada ser humano.

Sociedade Imagética! Esse foi meu ponto de partida. Fenômeno social que pude observar com clareza e profundidade na vivência como publicitário em agências de comunicação digital. A Sociedade Imagética traz o significado do perfeccionismo na construção da imagem como elemento principal, condição amplificada pelo estabelecimento das modernas redes sociais digitais.

A proposta? Estabelecer um paralelo entre a necessidade do homem moderno expor sua imagem no anseio de atender a uma inevitável sensação de pertencimento, versus a percepção daquilo que nos é diferente, a busca por compreender e ser compreendido pela distinção.

Daí a perda da humanidade nas relações, a superficialidade de imagens que reproduzem um padrão a ser consumido e não possibilitam, ou estimulam, o contato com as particularidades de cada um. E isso tem sido levado do mundo virtual para o real. Ou é coxinha ou é mortadela (para citar um exemplo atual). Há cada vez menos processamento da informação, uma vez que as imagens, com o objetivo de serem consumidas, nos são dadas já “mastigadas”.

Para ver ou para comer? (pela artista norueguesa Ida Skivenes)

Para ver ou para comer? Versões comestíveis de Magritte e Frida Khallo por Ida Skivenes.

“A era da visibilidade nos transforma a todos em imagens, invertendo o vetor da interação humana, criando a visão que se satisfaz apenas com a visão. Nossa era contemporânea pratica a iconofagia: ou nós devoramos as imagens, ou são as imagens que nos devoram” – Baitello Júnior, Norval (A Era da Iconofagia – Ensaios de Comunicação e Cultura, 2005)

Era importante a discussão entrar no âmbito educacional, estabelecermos um diálogo e provocar a interação entre os professores e demais funcionários do Senac Itaquera, exercitarmos a humanização. O evento se repetiria duas vezes naquele dia. No período da tarde e também no período da noite.

De tarde me vi de pé e no centro de um grande círculo formado por cerca de 40 pessoas. Foi difícil estabelecer aquela conexão olho no olho. O microfone e o violão amplificado deram um tom formal à situação. Em evidência o artista! Meu jeito pacífico ia na contramão de um discurso provocador, não conseguia fazê-los participar. “É, também preciso aperfeiçoar o Théo palestrante”, reflexão que faço agora.

Notei a atenção com que me ouviam, então propus que cantássemos juntos a canção “Criança”. Todos tinham em mãos a cópia da letra. Um lindo coro se fez e finalmente nos conectamos. A arte e seu poder de tocar! Expliquei minha relação com a música, composta por meu pai quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, e ficou evidente o poder da palavra, do amor e do carinho na transmissão de valores que moldam cidadãos mais humanos e sensíveis. E se o Théo artista já não tem sido suficiente, ele se mostrou indispensável.

Entre uma canção e outra alguns professores pediram a palavra para exporem situações vividas em sala de aula, e dentro do Senac Itaquera, nas quais uma abordagem mais humana fez a diferença de maneira positiva: seja para mediar uma situação de conflito; ou para motivar diante de uma dificuldade; ou simplesmente para ouvir com sensibilidade e se deixar tocar verdadeiramente. Histórias desconhecidas entre os colegas! Espanto positivo que os fez ter a real dimensão da humanidade presente em cada um, muitas vezes acobertada por um cotidiano que os coloca em rota de colisão.

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Show/Palestra Senac Itaquera (2016)

O reflexo foi imediato! Na atividade seguinte foi proposta uma dinâmica de grupo aos presentes. Eles deveriam se dividir para avaliarem casos reais de conflitos e situações inesperadas ocorridos no Senac Itaquera, descrevendo de que maneira buscariam solucionar os problemas. Deveriam também sugerir ações a partir de imagens ilustrativas. Tendo como apoio as diretrizes disciplinares estabelecidas pelo Senac, os grupos se saíram bem nas soluções propostas para a resolução dos casos reais. E surpreenderam ao não sugerirem nenhuma ação diante das imagens. À primeira vista, as imagens ilustravam cenas de preconceito, bullying e violência. Mas todos disseram não serem capazes de uma análise conclusiva com base apenas em uma imagem.

Uma das organizadoras me confidenciou total espanto diante da postura dos grupos. Ela tinha certeza de que se desenharia o óbvio, que seriam sugeridas ações de conscientização e medidas disciplinares diante das imagens. Mas tocados pelo tema da Humanização nas Relações, e a superficialidade como resultado de uma Sociedade Imagética, não se deixaram levar. Quem garante que a imagem que mostrava uma garotinha triste num canto da sala, enquanto alguns colegas cochichavam entre si, ilustrava uma cena de preconceito ou bullying? Foi levantada a hipótese de que ao verem a garotinha triste, os colegas planejavam uma surpresa para alegrá-la. “Missão cumprida!”, exclamei em pensamento.

De noite a turma era bem menor, talvez umas 15 pessoas. Foi uma experiência totalmente diferente! Eu já não estava de pé no centro do círculo com um microfone e o violão amplificado. Me sentei ao lado deles e integrei a roda de conversa. O papel de mediador/palestrante deixou de existir. Sem teorias, nem roteiro, a conexão foi instantânea! Olhos nos olhos e a canção “Além do Espelho” para dizer sobre meus valores e minhas raízes. Enquanto o último acorde ainda soava ao violão, a mensagem ecoou:

Show/Palestra no Senac Itaquera

Show/Palestra Senac Itaquera (2016)

“Fome! Sabe, você falou da fome e eu pensei sobre a fome que eu sinto às vezes. É uma fome falsa, pois é só a abrir a geladeira e a comida está lá, ou então ir ao supermercado e comprar. Só entendi a real dimensão do que é passar fome quando ouvi a história de uma aluna. Certo do seu desinteresse pelos estudos, questionei suas ausências nas aulas. Faltava dia sim, dia não. Ela respondeu: Professor, tenho que escolher, um dia assisto aula e no outro me alimento.”. Silêncio e comoção.

“Sabe, Théo, um dia olhei para minha filha e pensei em como ela era uma criança egoísta. O que poderia ter feito de errado ao educá-la? Certa vez fui à Fundação Casa junto com o pessoal da igreja, e ao me mostrar a sua cela, um dos menores infratores exibiu, todo orgulhoso, suas camisas em um armário improvisado. Elogiei, disse que as camisas eram bonitas. Então, o garoto pediu para eu escolher uma e levar de presente. Fiquei sem graça e disse que não precisava, que estava tudo certo. Ele insistiu e disse que ali aprendiam a dividir tudo. Senti como se estivesse levando um tapa na cara! Como podia pensar em dividir tendo tão pouco e vivendo em ambiente tão hostil? Que lindo exemplo! Me dei conta de que a minha filha era apenas reflexo de mim. O exemplo educa muito mais do que imaginava.”. O relato veio em uma voz embargada e cheia de convicção. Arrepiei!

Um choro copioso chamou a atenção de todos. Incentivada, a mulher contou sua história para nós. Merecia um livro! Sabe coisa de novela? Não vou me atrever a tentar transcrever seu relato, foi coisa de 20 minutos ou mais. Na véspera do seu casamento ela descobriu que tinha câncer. Não teve dúvidas, escondeu do noivo e da família por medo. Medo da reação da mãe, medo de ser abandonada pelo noivo… Muitos medos! Com a cumplicidade de alguns amigos escondeu a doença enquanto inventava desculpas para o adiamento do casamento. Precisaria operar, não tinha mais jeito, teria que contar. Não! A operação seria apenas para a “retirada das amídalas”, foi o que disse à família e ao noivo.

A última etapa na luta contra o câncer foi a radioterapia. Havia o temor de contaminar alguém após as sessões. Apesar de o médico garantir que a quantidade de radiação em seu corpo não traria qualquer risco às pessoas próximas, ela só sentiu segurança quando ele se despiu da roupa à prova de radiação e sentou-se ao seu lado para conversarem. “Gesto de uma sensibilidade e humanidade incríveis!”, exclamou emocionada.

Não pôde dizer o mesmo de uma enfermeira com a qual se deparou em outra situação. Uma garotinha, deitada em uma maca, chamou nossa heroína e lhe disse: “Me mata! Me mata! Eu quero morrer! Não aguento mais viver assim.”. O câncer revelou o seu lado mais cruel e doloroso. Foi solicitada a presença da enfermeira, que ao se aproximar pegou a garotinha pelos braços e sacudiu, dizendo: “Eu já não falei para você parar com isso? Fica aí atormentando as pessoas. Para com isso!”. Um duro golpe para quem iniciava sua caminhada na batalha contra o câncer. Não o desespero da garotinha, compreensível, mas sim a atitude desumana da enfermeira. Estarrecedor! (Até hoje sua mãe não sabe que ela teve câncer! Com o noivo ficou tudo certo e hoje são marido e mulher. Todos os detalhes dessa história só quando virar livro ou filme. Será?)

“Théo, cresci na periferia. Lugar barra pesada! Em frente a minha casa tinha uma boca e os traficantes circulavam o dia todo por lá. Muitos amigos foram por esse caminho e hoje estão mortos ou presos. E apesar de ver meu pai só de manhã e de noite antes de dormir, sempre senti o seu amor e aprendi com seus exemplos e sua conduta. Os vizinhos falavam para ele: Coloca esses negão pra trabalhar, vai ficar sustentando marmanjo? Ele ignorava, nunca abriu mão de que eu e meus irmãos estudássemos.”. E assim seguiu a roda de conversa, histórias compartilhadas e a Humanização nas Relações sendo vivida de maneira intensa. Pessoas emocionadas, reconhecendo uns aos outros, e a si mesmos, como seres humanos únicos, sensíveis e repletos de sentimentos.

“Nossa, te via na recepção e não imaginava essa pessoa maravilhosa. Parecia antipática.”, impressões que se dissolveram ao extrapolarmos os muros do Senac Itaquera e compartilharmos quem somos além do artista, além do publicitário, além do professor, além da recepcionista, além da faxineira, além da secretária, além do diretor, além do assistente…

A música ficou em segundo plano. Mal toquei! E mesmo tocando pouco, valeu muito mais do que se tivesse feito um show inteiro. As pessoas estavam totalmente conectadas! Os corações abertos para darem e receberem. Foi demais perceber que tinham no meu discurso, na minha reflexão, ou em trechos das minhas letras, o ponto de partida para narrarem suas histórias. Estão construindo algo muito bonito no Senac Itaquera. Feliz demais em colaborar e fazer parte disso. Momento lindo de se viver!

Me convenço, cada vez mais, de que há algo de especial na mensagem que tenho para compartilhar com minha arte. Por isso a necessidade de me empenhar e buscar melhorar sempre, para entregar e receber o melhor de mim e das pessoas.

Referências

Iconofagia por trás de uma sociedade imagética

Iconofagia: A era do caos imagético e do esvaziamento de sentimentos